quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Meus caros colegas

Estou sumido meus colegas,
Sufocado pelo sistema,
Assim diriam os Ratos nos porões de suas repartições.
Encaixotado, esmagado, porém ainda vivo.
O grito já está saindo,
Da minha cova estou fugindo.
Aguardem meus caros colegas,
O retorno virá rugindo!!!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cep para Mário Bortolotto

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Augusto Muro - poeminha à moda do sumido Vendell

Poeminha encomendado ao Vilson para homenagear (mimetizando) e quem sabe fazer aparecer o sumido Vendell.

AUGUSTO MURO

Esmurro o muro
Até criar um furo
um pequeno vão já
me deixa mais seguro

Não esmoreço, trasmudo
o urro em garra,
esmurro a faca
até a ponta entortar

Quero abolir fronteiras
construir pontes
derrubar o augúrio do muro
te abraçar e respirar.

Muros dividem, sufocam
a coletiva proteção do convívio, é
cada um por si,
nenhum por todos.

Assisto ao Floyd em "The Wall"
Paro, penso, reflito,
Derrubar muros é preciso.
É o que sinto.

*Fotos da instalação de Marcel Duchamp, chamada "Dados: 1.ºA Queda De Água, 2.ºGás de Iluminação - 1946-66", primeiro é a vista frontal da instalação e por último a vista através da porta da instalação.

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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Muros... Vidas que Ninguém Vê

Mais muros... mais um texto da bela escritora Eliane Brum e mais um do livro "A Vida Que Ninguém Vê".
Sinal Fechado Para Camila
—Tio lindo, tia linda do meu coração. Eu pergunto a você se não tem um trocadinho ou uma fichinha pra essa pobre garotinha...
Quase com certeza você ouviu esse hino em algum cruzamento de Porto Alegre. Debaixo de um sinal vermelho, o som entrando pelo vidro fechado, ameaçador como um Alien. O som entrando pela janela que você cerrou para se defender do ataque à sua consciência. Você rezando para que o sinal mude de cor, fique verde, não de esperança, mas verde de fuga. Sinal livre para escapar do rosto da menina grudado na janela. Sujando seu patrimônio. Obrigando-o a tomar conhecimento da miséria dela. Você, que paga seus impostos em dia, colabora com a campanha do agasalho, que até é um cara bacana. Subitamente transformado em réu no tribunal do sinal fechado por um rosto ranhento de criança.
Você, quase com certeza, ouviu esse hino. Pois saiba. A menina que o compôs morreu no domingo. Nunca mais ela assombrará a sua janela. A menina se chamava Camila. Camila Velásquez Xavier. Tinha dez anos. Mas os dez anos dela equivalem a cem dos seus. Camila viveu muito, até. No bairro onde ela nasceu, o Bom Jesus, 17 como ela morreram antes de completar um ano em 1997. Camila nasceu na Fátima, uma vila da Grande Bom Jesus. Vila, modo de dizer. Becos e mais becos de barracos amontoados sobre o cimento. Lá, o controle da população é feito ao natural. Só em janeiro, já tombaram quatro. Assassinatos citados em notinhas de canto de página.
Camila nasceu na Fátima, num barraco de uma peça. Quando chovia, havia tanta água fora quanto dentro. Em dez anos a família progrediu. Conseguiu um barraco de duas peças. Camila dormia com os quatro irmãos num sofá esburacado ou no chão de tábuas podres porque não havia lugar para todos. Pai e mãe desempregados, o pai um homem triste, de olhos injetados, que descia o braço sobre a mãe sempre que bebia além da conta.
Aos seis anos Camila foi enviada aos sinais para ganhar a vida da família. Logo descobriu que a concorrência era enorme. Que as janelas dos carros eram a versão moderna das muralhas medievais. Camila começou a embelezar sua tragédia. Inventou versinhos que venciam fossos e arriavam pontes levadiças, arrancando um sorriso perplexo dos motoristas. Eu não posso ficar sem você, meu trocadinho. Essa tia, esse tio queridinho vai me dar um trocadinho. Camila conquistou a sua diferença nos cruzamentos da cidade. Seus hinos se espalharam pelas sinaleiras e, mesmo depois de sua morte, seguem ecoando pela boca de outras Camilas.
Aos seis anos, flagrada na rua, Camila entrou pela primeira vez no prédio sem cor da Febem. Entraria ainda outras duas vezes. Na sexta-feira, 15 de janeiro, ela e outras cinco meninas jogaram suas trouxinhas pela janela do prédio. Um ursinho Puff de segunda mão e algumas camisetas compunham o espólio coletivo. Quando a porta se abriu para brincarem na pracinha – uma ficção de armações de ferro que há muito perdeu os balanços e as gangorras, uma ficção como a infância de todas elas – iniciaram sua jornada rumo à liberdade. Que passou na forma de um ônibus lotado para o centro de Porto Alegre.
No dia seguinte, a direção da casa informou ao plantão do Conselho Tutelar. Que anotou. Estava cumprido o trâmite burocrático. Por todo o final de semana, Camila e suas cúmplices de desamparo vagaram pelas pontes da cidade sem que ninguém as buscasse. Crianças sob a tutela do Estado vagando ao léu sem que ninguém chorasse a sua falta. Fazia calor no domingo, todo mundo lembra. Um calor tão pesado que quase se podia tocá-lo. Às 14h, de calcinha e camiseta, Camila e duas das fugitivas mergulharam no Guaíba na altura do parque Marinha do Brasil. Camila não sabia nadar. Debatendo-se como fez durante toda a vida, Camila, a senhora dos cruzamentos, submergiu.
Às 8h de segunda-feira, a notícia da fuga e da morte de Camila despertou a família. Vai ter que esperar porque ainda não abrimos a menina, informou o funcionário do Departamento Médico Legal à mãe quando ela foi recolher o corpo da filha. Camila foi enterrada na manhã de terça-feira, no caixão branco dos inocentes. A Febem pagou o enterro, pagou até uma capela funerária com ar-condicionado. Que lugar mais lindo, repetiam os familiares, assombrados com o espaço tão grande e tão verde da morte. Acompanhada por um séqüito de parentes de rostos derrotados, Camila foi enterrada no Jardim da Paz. No cortejo, um único terno. Puído e manchado, envergado por um homem em quem o sofrimento abriu sulcos no rosto. Um homem tentando agarrar a dignidade que escapava como o cós da calça maior que ele. No cortejo, nenhuma flor para Camila.
Talvez você lembre de Camila. Talvez não. Sua marca registrada, além da cantoria dos cruzamentos, eram os dedos indicador e médio eternamente na boca. Sua imagem desvalida não voltará a assombrar as janelas sob os sinais. Camila morreu. Mas o versinhos de Camila cruzaram o ar e semearam as esquinas. Não se iluda. Você não vai escapar. Há um exército de Camilas pela cidade. Haverá sempre uma delas tentando arrombar o vidro do carro com a urgência de sua fome. Camila morreu. Você, e eu também, somos cúmplices de sua morte. Nós todos a assassinamos. A questão é saber quantas Camilas precisarão morrer antes de baixarmos o vidro de nossa inconsciência. Você sabe? E agora, tio lindo, tia linda, o que vamos fazer?
*Texto de 23 de janeiro de 1999, compilado no livro "A Vida Que Ninguém Vê", de Eliane Brum.


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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Bortolotto e o que a mídia vem dizendo...

Texto providencial do Márcio Américo sobre o Mario Bortolotto e a repercussão da mídia sobre o caso. Texto tirado lá do Blog do Márcio Américo:

"Algumas pessoas tem tentado associar a violência cometida contra o Mário Bortolotto a arte produzida por ele. Isso é no mínimo leviano e só revela ignorância, tira o foco dos reais motivos que desaguaram nesta quase tragédia. Conheço TODA obra do Mário Bortolotto, conheço o próprio Mário e não é de hoje, e posso afirmar com toda certeza que a obra dele não tem como foco a violência, nunca teve. Há alguns personagens violentos, como tem em Nelson Rodrigues e até em Maria Clara Machado, mas a mensagem da obra do Bortolotto é para aqueles que optaram em manter-se fora deste esquema maluco que nossa sociedade montou com uma promessa absurda de felicidade. Os personagens do Mário não estão em busca de alegria, prosperidade, todos eles buscam uma só coisa: PAZ. Seus personagens são loosers, sentados, lendo, olhando o infinito, ostentando um olhar melancólico pra disfarçar talvez sua inabilidade em entender o que não faz sentido. Mário é da paz, não esta paz de pombinha branca, esta paz de passeatas com camisetas, mas a paz individual, a paz que te dá a possibilidade de sentar-se na mesa do bar, mesmo sozinho, e ficar olhando o nada, ouvindo uma boa musica, sabendo que pelo menos até aquele momento ta tudo bem.

"Teve ainda pessoas que tentaram o associar o nome de seu blog, ATIRE NO DRAMATURGO, á violência. Mais uma vez prova de ignorância de quem falou uma merda dessa. Atire no dramaturgo só nos revela o sofisticado background do Mário, o título é uma referência a um famoso romance policial do David Goodis “Atire no Pianista” que por sua vez remete aos clássicos do western onde, nos salloons, havia uma placa sobre o pianista que dizia: proibido atirar no pianista. Uma ironia, alias, outra marca registrada na obra do Mário. Atirar no dramaturgo é falar com o dramaturgo, criticar o dramaturgo, discordar ou concordar com ele, ou simplesmente agradecer por uma noite legal, por um show fraterno e pacifico. Quem fala que Mário atrai violência é porque nunca foi ao show de sua banda Saco de Ratos, onde sempre rola uma espécie de culto silencioso à fraternidade, onde pessoas sobem no palco e cantam, dançam, lêem poemas e são sempre recebidos pelo Mário com aquele seu típico abraço padrão Zé Colméia.

"Chega deste tipo de mentira, vamos falar a real, o que causou a tragédia foi o abandono da praça Roosevelt, foi a atitude mesquinha, medieval e despótica de um governante que atrelado ao ministério publico, manda capangas fechar o Parlapatoes porque as pessoas estavam na calçada CONVERSANDO, então, em razão destas leis de exclusão, destes apartheides sociais, as pessoas precisam abandonar as calçadas e ficarem confinadas dentro do bar, embaladas para presente, uma prato cheio pra qualquer maluco entrar e tentar um assalto suicida.

"Vamos pensar um pouco, vamos lembrar dos últimos fatos ocorridos ali, um dos quais eu presenciei, e logo logo saberemos de quem era o segundo dedo no gatilho.

"Espero, de tudo isso, apenas uma coisa, que o Mário se restabeleça o quanto antes, que possamos ver ainda muitos shows seus, muitas peças, ler outros tantos poemas, livros, que possamos discutir acaloradamente na mesa do bar e num segundo depois fazermos as mesmas piadas, sobre os mesmos amigos, como sempre fizemos, e aí, ao final da noite, irmos pra casa, e, mesmo cansados, podermos tirar os cadarços e dormir em paz.

"A última informação que tenho é que, segundo a Christine, mãe da Isabella Bortolotto, o estado do Mário é estável, grave, mas estável. Ontem a noite o governado José Serra esteve lá, conversou com ambas e ficou claro que tudo, TUDO que está sendo feito para que o Mário saía desta.

"PS.: Aquele viado do iluminador, ator, ilustrador e músico Henrique Figueiroa, vulgarmente conhecido como Carlos Carcarah, ta de boa e, mesmo no quarto, junto com sua namorada a Manuela, está unido a todos nós neste desejo de que o Mário fique bem. "
*Texto do Márcio Américo.
Ano que vem está previsto o lançamento do filme "Meninos de Kichute", baseado no livro homônimo do Márcio, quem quiser ver o trailer:




Ainda sobre a repercussão da mídia sobre o crime contra o Bortolotto, vejam o texto do Marcelo Rubens Paiva de hoje.

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Continuando a falar sobre Muros...

Texto da jornalista Eliane Brum, originalmente publicado no jornal Zero Hora de Porto Alegre e compilado no belo livro "A Vida Que Ninguém Vê".
O Cativeiro
O Zoológico de Sapucaia do Sul abrigou um dia um macaco chamado Alemão. Em um domingo de sol, Alemão conseguiu abrir o cadeado e escapou. Ele tinha o largo horizonte do mundo à sua espera. Tinha as árvores do bosque ao alcance de seus dedos. Tinha o vento sussurrando promessas em seus ouvidos. Alemão tinha tudo isso. Ele passara a vida tentando abrir aquele cadeado. Quando conseguiu, virou as costas. Em vez de mergulhar na liberdade, desconhecida e sem garantias, Alemão caminhou até o restaurante lotado de visitantes. Pegou uma cerveja e ficou bebericando no balcão. Os humanos fugiram apavorados.
Por que fugiram?
O macaco havia virado um homem.
O perturbador desta história real não é a semelhança entre o homem e o macaco. Tudo isso é tão velho quanto Darwin. O aterrador é que, como homem, o macaco virou as costas para a liberdade. E foi ao bar beber uma.
Um zoológico serve para muitas coisas, algumas delas edificantes. Mas um zoológico serve, principalmente, para que o homem tenha a chance de, diante da jaula do outro, certificar-se de sua liberdade. E da superioridade de sua espécie. Pode então voltar para o apartamento financiado em 15 anos satisfeito com a vida. Abrir as grades da porta contente com seu molho de chaves e se aboletar no sofá em frente à TV. Acorda na segunda-feira feliz para o batente. Feliz por ser homem. E por ser livre.
Há duas maneiras de se visitar um zoológico: com ou sem inocência. A primeira é a mais fácil. E a única com satisfação garantida. A outra pode ser uma jornada sombria para dentro do espelho. Sem glamour e também sem volta.
Acompanhe, se quiser.
O babuíno sagrado tem um nome comum. Beto. À espreita, lá onde os olhos se misturam com a mente, há o mais perigoso tipo de fúria. A da importância. Beto dá voltas e mais voltas na jaula, esmurra as grades. Atira comida e fezes nos visitantes. Espanca a companheira se ela não faz tudo o que ele quer. Não admite que emita um som sem a sua permissão. Não deixa que arrede pé sem a sua complacência. Se o faz, Beto cobre-a de tapas. Se a tiram de perto dele, Beto piora. Começa a arrancar pedaços do próprio corpo. Durante as crises, Beto toma dez miligramas de Valium por dia.
Os tigres-de-bengala são reis de fantasia. Têm voz, possuem músculos, são magníficos. Mas nascidos em cativeiro, já chegaram ao mundo sem essência. São um desejo que nunca se tornará. Adivinham as selvas úmidas da Ásia, mas nem sequer reconhecem as estrelas. Quando o sol escorrega sobre a região metropolitana, são trancafiados em furnas de pedra, claustrofóbicas. De nada servem as presas a caçadores que comem carne de cavalo abatido em frigorífico. De nada serve a sanha a quem dorme enrodilhado, exilado não do que foi, mas do que poderia ter sido. E que jamais será.
Anos atrás, um de seus bisavôs galgou a escada do tratador e espiou para além dos muros. Foi o mais longe que um deles chegou. São poderosos, os tigres-de-bengala. Mas quando chega a hora de serem confinados na caverna escura de sua escravidão, viram as costas para a Lua que aponta como promessa e marcham para a jaula. Alquebrados, submissos, como o mais vil animal da floresta.
A ursa-de-óculos é chamada de Peposa. Como se brinquedo fosse. O filho se chama Rayban, também muito engraçadinho. Quando nasceu Rayban, ela fez o que as mães costumam fazer: ensinou a ele a arte da resignação. Pegou-o pela orelha e carregou-o até as entranhas da furna na hora marcada. Hoje, Rayban vai por sua conta. Mas, todos os dias, Rayban desafia a mãe, se esgueira e testa o cadeado. Sem jamais ter aspirado o perfume gelado da cordilheira de seus ancestrais, Rayban não adivinha o que há do outro lado. Mas intui. E por ser criança ainda não desistiu de buscar.
Pinky vive só. Os outros elefantes, Nely e Mohan, caíram no fosso e sucumbiram. O fosso é a prisão dos elefantes. Mohan viveu seis anos acorrentado porque o cativeiro de sua espécie ainda não estava pronto. Quando o soltaram, durou três meses. Morreu tentando alcançar a liberdade. Ou apenas um dos cães que perambulam por lá e são achados aos pedaços. Dos três, Nely sempre foi a mais indomável. Dezenove anos atrás, matou um visitante. Um mineiro de Criciúma que comemorava a aposentadoria. Recém-liberto da solidão trevosa das minas de carvão, ele montou sobre Nely. Ela o derrubou sobre o chão e esmagou sua cabeça. Tão parecidos em sua tragédia, a elefanta e o homem.
Foram três as vezes em que Nely mergulhou no fosso. Numa delas, perdeu parte da barriga e uma mama na queda. Não desistiu. Morreu na terceira, tentando. Como nunca esquece, a elefanta Pinky assimilou o exemplo. E convenceu-se de que implacável é a punição para quem ousa dar um passo além do permitido.
A revelação dessa visita subversiva ao zoológico é que, no cativeiro, os animais se humanizam. O cárcere lhes arranca a vida, o desejo e a busca. E mais e mais vão se parecendo com os homens que os procuram na certeza de um álibi. Perigosa é a pergunta.
O que aconteceria se você encontrasse a chave do cadeado invisível de sua vida? O que aconteceria se você saltasse sobre o fosso de sua rotina? O que aconteceria se você desse o passo da elefanta?
Bem, talvez seja melhor caminhar até o balcão e beber uma.
*Texto de 11 de setembro de 1999, compilado no livro "A Vida Que Ninguém Vê", de Eliane Brum.

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Força Bortolotto!

No último sábado, no Espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt em São Paulo, possíveis personagens Bortolottinos atiraram no dramaturgo. Toscos personagens esses. E tosca introdução, sei, mas só a fiz por já saber que o dramaturgo está se recuperando. Mário Bortolotto foi atingido por três tiros numa tentativa de assalto após a apresentação da peça "Brutal", de sua autoria, dia 05/12/2009. Notícias mais completas podem ser vistas no blog dos Parlapatões e no do Marcelo Rubens Paiva. Sou um leitor e admirador da obra do Marião, torço pela sua recuperação e espero que, sem qualquer sequela, ele possa voltar o mais breve possível à sua rotina, escrevendo, atuando, cantando e curtindo. E não deixemos a violência nos dominar! Cuidado com os muros que levantamos por medo... Vamos continuar na resistência...
Vejam o que o camarada Chacal escreveu também.

Tem um bocado de vídeo do Mário no Youtube, inclusive da Saco de Ratos, banda na qual ele canta, mas indico aqui a entrevista que o Peréio fez com ele para seu programa "Sem Frescura", para quem ainda não o conhece.

Continuamos na torcida pelas melhoras do comparsa Bortolotto. FORÇA AÍ MARIÃO!

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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ainda sobre "Muros"

Como tá todo mundo sumido há muito tempo, por favor, deixem de preguiça e leiam o texto abaixo, não custa nada tirar os fones dos ouvidos um pouco e fechar o MSN por instantes. A leitura será recompensadora, se é que buscam uma recompensa. Ainda virão outros textos sobre o tema " muro", aguardem.
O texto abaixo é do sr Gregório Bacic, parceiro do Abujamra no Provocações, que nossa Rede Minas, infelizmente, não mais trasmite. Eis pois, o conto:
PEQUENAS DISTRAÇÕES

A antiga mureta subiu com a rapidez com que sobem os tijolos de uma sepultura. As setas dos portões cresceram apontadas para o céu e só não se perderam no espaço porque a laje do primeiro andar do sobrado as conteve com determinação. Uma guarita se instalou na calçada entre as árvores moribundas e a entrada dos automóveis, vigiando o cimentado que, antes da reforma, era um jardim ingênuo de copos-de-leite e rosas vermelhas. As janelas de cima dão, contra a vontade, para a rua, envergando grades de puro aço, com vãos que mal permitiriam a passagem de um gato esguio. Ao fundo da casa, batendo com a parede de trás de um templo evangélico, um muro subiu desmedidamente protetor e curvou-se sobre a área de serviço, expandindo-se em seguida para o corredor lateral e eliminando em definitivo a conversa com os vizinhos. Para defender a privacidade do que se falava e proteger a casa dos cânticos de fé entoados pelo populacho, gastou-se no revestimento acústico o que era uma verdadeira fortuna para os padrões daquele bairro novo rico da antiga periferia. As armações do telhado foram reforçadas in extremis, de modo a evitar perigos que a ousadia dos salteadores poderia trazer do alto. A casa antigamente singela só não se transformou num bunker total de segurança máxima porque permanecia vulnerável à queda dos aviões e – do jeito que as coisas iam – aos bombardeios aéreos de que, mais cedo ou mais tarde, o crime lançará mão.
O patrimônio da família – o medo – estava provisoriamente a salvo; medo dos ladrões, dos seqüestradores, dos estupradores, medo dos ventos, das enchentes, dos miseráveis, dos poderosos, dos fiscais, medo do terror, dos traficantes, dos negros, dos nordestinos, medo dos maloqueiros da favela, dos vendedores, dos cobradores, dos pregadores fanáticos, dos moto-boys que fumam maconha, dos ônibus lotados que despencam pela rua, medo da liberdade, medo da morte, medo da vida, medo do outro.
Apesar de já inexpugnável, a fortaleza carecia de ainda mais. Sim, porque a segurança somente seria segura se pudesse contar com mecanismos de metassegurança, ou seja, camadas sistêmicas que se sobrepusessem ao sistema, vigiando seus próprios agentes protetores. Era preciso ter certeza da qualidade dos serviços contratados; era preciso assegurar-se da confiabilidade dos guariteiros. Assim, a família instituiu o uso doméstico do crachá. Todos os nove residentes – pai, mãe, avó, tio-avô, filho, duas filhas, nora e genro – deveriam portá-lo no peito, cabendo ao guariteiro liberar a entrada somente aos que cumprissem a norma; nos casos de esquecimento ou perda do crachá, o morador retornante ficaria retido entre dois portões eletrônicos internos, acionados por controle remoto, à espera do reconhecimento e da conseqüente liberação de sua entrada por outro membro da família. A área de espera intraportões poupava ao infrator da norma aguardar do lado de fora, na rua, onde não poderia ter garantida sua segurança pessoal. Constatada a perda de um crachá, um sistema de emergência forneceria senhas provisórias a cada membro da família, onde estivesse, até que se renovassem todos os crachás, impedindo o uso indevido por terceiros do exemplar perdido (roubado?!). De início, as mulheres da casa questionaram a real eficácia do método e protestaram contra o anúncio de que haveria também crachás para visitantes, o que condenaria ao fim o gosto da filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, em receber amigas da escola. Mas, tiveram de curvar-se à evidência: só assim se poderia verificar se eram mesmo cumpridores e responsáveis os guariteiros. Sem crachá, ninguém entra; nem o dono, por mais inconfundível que seja aos olhos dos seus servidores. Decidiu-se ainda pela obrigatoriedade de os guariteiros preencherem relatórios diários, enumerando horários de saídas e entradas e, numa coluna de ocorrências extraordinárias, a passagem de terceiros, como carteiros, entregadores de jornais, mendigos e outras pessoas vistas com suspeita. Esses relatórios subiam à noite para o escritório, onde a nora elaborava planilhas de movimentação diária e as guardava num cofre-forte, mas poderiam ser requisitadas pela avó a qualquer momento para verificações emergenciais e confrontações com relatos pessoais de cada membro da família sobre estranhamentos no trânsito; afinal, uma mera fechada por automóvel ou moto poderia não ser mera. Quem sabe se não estaria ali se esboçando o crime hediondo de um seqüestro? O crescimento vertiginoso desse tipo de evento nas estatísticas determinava a preferência da família por carros populares, os únicos capazes de não chamar a atenção dos criminosos à espreita. Mas, como bastasse um único descuido para pôr tudo a perder, resolveu-se elidir os riscos, providenciando-se a blindagem da frota familiar de Uno Mille.
Num mês seguinte, decidiu-se instalar uma câmara de vídeo voltada para o interregno de portões, com o fito de assegurar o reconhecimento dos chegantes diretamente da sala de visitas, sem que o responsável por isso tivesse que se expor. Da sensação renovada de maior segurança, comodidade e encantamento tecnológico, evoluiu-se para um sistema completo de captação de imagens e de sons, ocultando-se microcâmaras e microfones nos pontos do lar considerados estratégicos. As motivações para esse passo adiante foram o aprimoramento, sempre possível, do controle interno e a conveniência de se ter gravada a imagem do delinqüente que ludibriasse o sistema e invadisse a casa. Também feminina foi a primeira resistência a esse avanço, quando a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, esqueceu-se da vigilância eletrônica e, masturbando-se, foi surpreendida pela câmara instalada na despensa. Por não saber como abordar o assunto, o pai fingiu não ter visto nada e transferiu o fardo para a mãe. As mulheres foram informadas de que sua intimidade estava suspensa, não lhes sendo aconselhável banhar-se ou trocar de roupa sem antes reservarem horários apropriados, de curta duração, em que as gravações nos banheiros seriam interrompidas para revisão técnica. A mãe contornou o mal-estar argumentando que, se aquele era um preço alto a ser pago, seria ainda muito baixo caso as câmaras viessem um dia a registrar cenas de estupro por um invasor. Quanto à filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, foi severamente admoestada pela indecência com que gerou a situação, mas ganhou da cunhada, para consolação, um filhote de chiuahua, a que deu o nome de Speedy Gonzãlez e tanto se apegou, que passaram, ela e o animal, a ser tratados em casa como o casal González.
O sistema de segurança era agora comprovadamente perfeito. Mas o medo é esperto, cheio de manhas, capaz de contorções absurdas para se adaptar a emoções em cacos e não abandonar o barco. O pior poderia estar por segundos. E se algo falhasse? Foi necessário reforçar a defesa com pitbulls amestrados: Goebbels e Goering corriam lestos e sagazes num cercado do quintal, como penúltima instância. Sim, porque havia ainda uma última instância: metralhadoras de cano curto Kalashnikov, adquiridas a um contrabandista para armar a família contra as terríveis conseqüências de um porre, de um surto de loucura ou, mesmo, da traição do segurança nordestino de plantão. Ao encomendar-se uma pizza, por exemplo, como ter a certeza de que o entregador, mancomunado com o cafuzo da guarita, não invadiria a casa, envenenando os cães e fazendo refém toda a família? A falta no Brasil de guariteiros ágeis como galgos e perspicazes como perdigueiros, mas leais como são-bernardos, germanicamente preparados, foi responsabilizada por mais esse gasto no mercado clandestino, ilegal, ocupado exatamente por aquele tipo de gente de quem cumpria defender-se. A lógica imperava mais uma vez: para enfrentar o pior inimigo, só mesmo com a mais poderosa arma do pior inimigo.
O recebimento da pizza, duas vezes por semana, mereceu o nome de Operação Margherita I, tendo se repetido depois como II, III, IV, XVII, LXI... e assim por diante. Consistia na distribuição dos homens da família em pontos recônditos da casa, à espreita, com suas Kalashnikov em punho, prontas para disparar, escondendo-se o pai atrás da janela do sótão, com uma granada na mão, de onde poderia observar o entorno, a rua, e contra-atacar, se necessário. Enquanto o mulherio se postava em alerta na sala de jantar, empunhando talheres pontiagudos, especialmente afiados para a ocasião, com que decepariam aos vilões acuados os dedos, a mão ou o que mais fosse preciso, o tio avô recebia a entrega pelo vão da jaula de portões, não sem antes obrigar o entregador a provar um naco de pizza, para certificar-se de que não trazia soporíferos, barbitúricos ou drogas de qualquer espécie que pudessem arrefecer as trincheiras da família. A filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, odiava a Operação. Ao cortar a pizza no prato, tremia de imaginar que naquele momento poderia estar empunhando os mesmos talheres na punição que o pai planejara para os invasores. Ao passar bocadinhos carinhosos do recheio para Speedy González, no colo, afligia-se de pensar que estivesse servindo ao animal picadinhos de dedos ou de alguma outra parte do corpo a que preferiria, ela, dar destinação mais gloriosa e integral.
Alguma vez, à mesa, ao cabo de mais uma Operação Margherita, a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, deve ter perguntado à família por que atravessar a vida arrastando esse fardo cruel, que nada contém senão o medo do que poderia um dia, talvez, quem sabe, porventura, vir a acontecer? Por que não baixar a guarda e cuidar, sem temor, para que a vida pudesse correr solta? Lá fora? A filha mais nova, de 15 anos, se chegou a fazer essas perguntas em casa, foi vista, é claro, como perigosamente distraída. Ingênua! Como seria possível fecharem-se os olhos para a realidade? E a realidade é que, hoje, não se respeitam mais os valores que fizeram o mundo caminhar até aqui. As cidades do Brasil estão nas mãos da bandidagem. E sabe onde se escondem os bandidos? Nem mais se escondem. Hoje, são as pessoas direitas que se escondem. É preciso desconfiar de tudo e de todos, porque o tiro certeiro ou a bala perdida vêm. Não se sabe mais de onde, mas vêm! Chamar a polícia? Nem pensar. O poder público perdeu completamente a capacidade de garantir a segurança dos cidadãos. Está certo que há delegados bem formados e, em princípio, razoavelmente confiáveis. Mas andam em má companhia: não há, por certo, um único policial civil ou militar que sobrepuje a horda social de que se origina, a mesma em que nasceram e se reproduzem como moscas os ladrões, a bandidagem, a malandragem, os estupradores e os salafrários de toda espécie, sempre a postos para atacar, qual uma corja de raposas circundando um galinheiro. E em se tratando – policiais e foras-da-lei – de bestas da mesma estirpe, farinha do mesmo saco, não há como desprezar a idéia de que tramam juntos. Chamar a polícia seria o mesmo que abrir as portas de casa a essa gente, expor as fragilidades do nosso reduto a pessoas suspeitas, que depois, certamente, darão o serviço a sabe-se lá quem!
Os que vivem de esperar a tragédia são os que melhor sabem atraí-la. Por distração da filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, Speedy González, o filhote de chiuahua, escapou para o quintal e invadiu o cercado dos pitbulls, sendo estraçalhado por Goering. Vinha atrás a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, que não chegou a tempo. Em estado de choque, seus olhos puderam apenas acompanhar os minutos finais do minúsculo Speedy González devorado pelo mastodonte, que lutava por não dividir o petisco com o enfurecido Goebbels.
A família acachapou-se de tal forma com o estado da filha, que decretou por três dias o toque de recolher, durante o qual se deveriam extrair lições da tragédia doméstica estampada nos olhos esbugalhados e no silêncio estarrecido da bela menina recolhida à cama. Haveriam de compartilhar o didatismo do espetáculo terrível: um mero acidente doméstico causava um abalo sísmico. Como seria então se o pior acontecesse? O que seria deles se a tragédia viesse de fora, pelas mãos criminosas de estranhos? Já no segundo dia, porém, a consternação familiar se esvaziou, dando espaço a algo irrefreável que tomava corpo: um discreto sentimento de orgulho para com a atuação de Goering, em sua primeira situação de risco enfrentada naquela casa: diante do cãozinho invasor, não negou fogo, mostrou a que veio.
No terceiro alvorecer, a filha mais nova, de 15 anos, vista em casa como perigosamente distraída, trajando um baby-doll cor-de-rosa transparente sobre o corpo nu e calçando pantufas, desceu plácida para o quintal, rumo ao cercado dos cães. Esganiçando, Goebbels e Goering lançaram-se em sobressalto contra a grade. Uma Kalashnikov ergueu-se serena e calculadamente nas mãos da menina e metralhou os cães. Com a mão esquerda brandindo a arma para o alto, o braço direito e os quadris da menina iniciaram um meneio lento e sensual, evoluindo para a fúria lasciva de uma dança inebriante e orgástica em torno dos cães mortos. Os olhos azuis extasiados descobriram a câmara posta no alto. Num golpe arrebatado, a filha mais nova rasgou a seda cor-de-rosa frontal que a cobria e, orgulhosa e provocadora, ofereceu os peitos ensoberbados para o equipamento, após o que, o metralhou. Até aquele momento, toda a cena poderia ter sido assistida pelo circuito interno de TV. Mas por quem, se já não havia sobreviventes?
*Gregório Bacic, “Pequenas distrações” conto presente no livro "Peão envenenado e outras provocações".

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